Um mundo sem drogas?

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Quem aqui usa drogas? Fazer essa pergunta em um auditório lotado é sempre surpreendente. Geralmente, a maior parte das pessoas fica quieta. Quando você repete a pergunta, inscrevendo como droga a cervejinha do final de semana, a medicação para dormir ou o cigarro de depois do almoço, na maioria das vezes, o quantitativo de pessoas que levantam a mão aumenta significativamente.

De fato, para muitos/as, pode soar como “comprometedor” se declarar usuário/a de drogas. Interessante! O tempo passa e continuamos a falar de drogas como algo estranho, distante, ignorando a constatação histórica de que as drogas estão presentes na nossa cultura, desde as mais remotas sociedades.

Com formas de uso diferentes, que apontam finalidades de uso também diferentes, não há registro de sociedade que não fez uso de drogas. É por isso que, quando vejo alguns slogans que remetem à construção de “um mundo sem drogas”, tenho a convicção que essa é uma tarefa fadada ao fracasso. Não houve e certamente não haverá este mundo.

Mas por que ainda soa como “comprometedor”, para algumas pessoas, declarar-se como usuário/a de drogas hoje? Parece que é a valoração moral que ainda marca grande parte do debate sobre uso de drogas na nossa sociedade! A discussão do que é certo e errado, admirável ou condenável… é o nosso exercício de julgar o outro, usando para isso os óculos que vemos a nossa própria vida, os conceitos que são nossos. São nossos, embora, muitas vezes, não utilizemos para nós. Não conseguimos nos reconhecer no espelho (que é o outro!) e, simplesmente, julgamos, decidimos o que cada um deve fazer da sua vida, com o seu corpo.

Há um tempo, participei de um debate com José Carlos Escobar, psiquiatra e psicanalista de referência no cuidado a usuários/as de drogas. E, em determinado momento de sua fala, ele disse: “Eu defendo o direito de fugir. Eu acho que as pessoas tem o direito de fugir”. Para mim, com essa fala, Escobar nos convida a, primeiro, pensar na fuga não como algo excepcional ou algo característico apenas dos/das usuários/as de drogas. As dores, os pesos, as tensões, bem como a euforia, os excessos de alegria, pedem válvulas de escape. Nós, humanos, a todo momento pedimos, encontramos e construímos, válvulas de escape.

Ousemos pensar: quais são as rotas de fuga possíveis e para quem estão disponíveis? Quem diz sobre a escolha por esta ou aquela rota? Quem oferece condições de possibilidade para que diferentes escolhas sejam realizadas? É! Viver é difícil e entorpecer-se, às vezes, é sim um caminho. Agora, o que faz o entorpecimento eventual ou social (este que é considerado uma válvula de escape!), transformar-se em abusivo ou problemático e única rota de fuga de uma pessoa? Como a cervejinha do final de semana se transforma em alcoolismo? Bem, vejo que teremos muitas conversas boas pela frente!

* Para quem quiser continuar a reflexão sobre o que é droga e como ela, em suas mais variadas representações, estão presentes em nossa vida, sugiro assistir o vídeo “Fora de Si”, produzido pelo Conselho Federal de Psicologia, em parceira com a TV Futura. O vídeo está disponível na galeria de vídeos do site http://drogasesaude.org.br  e também no Youtube!

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imagem:  Konstantin Lazorkin

4 COMENTÁRIOS

  1. Assunto bom pra explorar, que bom que foi dada a largada! Atuo na área de álcool e drogas desde que me formei, já trabalhei em Comunidade Terapêutica, Clinica especializada, hospital psiquiátrico e atualmente em CAPS. Fiz a especialização em dependência química pela Unifesp/Uniad. Tai uma clinica desafiadora e que convida a gente a se despir a cada dia dos nossos preconceitos (no seu mais profundo significado). Nada faz mais sentido do que dar voz ao próprio sujeito para que encontre o caminho mais possível para seu tratamento, descobrindo o que mais pode trazer este “entorpecimento” que de fato se faz necessário em diversos momentos da vida. Parabéns Edna pelo texto e ao Reabme pela iniciativa. Espero ler mais sobre o assunto por aqui! Abraços.

  2. Fiquei pensando… Não só o que mais pode trazer o entorpecimento, mas também temos que considerar de que forma entorpecer minimizando os danos…
    Caso contrario já estaria partindo do pressuposto que o sujeito em questão deveria optar pela abstinência. Enfim, muitas reflexões!

  3. Muito bom tê-la por aqui, Camila! Você e o seu interesse por refletir sobre o uso de drogas. Eu tenho um pensamento um tanto extremista… acho que todas as pessoas usam drogas. E, quando falo isso, estou me referindo a substâncias psicoativas e também a outras substâncias e coisas que fazemos de droga na nossa vida. Qualquer coisa pode se tornar uma droga. Falo isso para reafirmar a dimensão relacional que defendo. A potencialidade da droga não está na droga e sim na relação que a pessoa constrói com a droga. Então, concordo com você que não devemos nos referir à abstinência como horizonte, da mesma forma que o título “Um mundo sem drogas?” é só uma provocação. Não acredito nele. Lícitas ou ilícitas. Substâncias ou outras coisas. Penso que o mundo conviveu, conviver e conviverá com as drogas sempre. Como conviver? Para mim, essa é a questão. Bem… continuemos conversando e alimentando estas reflexões! Abraço fraterno a Camila e a todos os leitores e leitoras do Reab.me!

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