Eu trabalho com redução de danos! E você?

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No meio da tarde, recebo uma ligação de uma amiga. Ela gargalhava no telefone e eu mal conseguia entendê-la. Estava em Fortaleza, em uma praia paradisíaca. Disse que ligou só para dizer que, entre as tantas cervejas, tinha tomado uma água mineral. E que, na hora que fez isso, lembrou de uma voz dizendo pra ela: “redução de danos!”.

Isso porque se tornou uma brincadeira corriqueira, no meio de farras, compartilharmos algumas dicas de redução de danos. A hidratação entre uma cerveja e outra era a mais comum! Surgiam umas garrafas de água na mesa e, de repente, todo mundo estava tomando água e, dessa forma, reduzindo um dos danos significativos que a ingestão do álcool provoca no nosso corpo, que é a desidratação.

Durante o carnaval, a Entrelaços, espaço de diálogos e vivências terapêuticas do qual faço parte, divulgou algumas dicas de redução de danos no Facebook, sob o slogan de “estratégias para garantir mais vida no seu carnaval”. Iniciamos com um conjunto de dicas simples, que muita já gente conhecia, mas não custava nada lembrar.

“Se for beber ou usar outras drogas:

Alimente-se antes!
Evite misturar tipos de drogas (isso vale também para tipos de bebidas!).
Evite usar sozinho/a!
Beba água antes, durante e depois!”.

A recepção das pessoas foi muito boa. É a nossa publicação mais visualizada até hoje. Foram quase 28 mil visualizações, mais de 300 compartilhamentos. Seguimos então com outras dicas. Algumas mais polêmicas, como, por exemplo, as referentes à overdose e a dita “bad trip” (que ocorre quando o efeito provocado pela droga é ruim e diferente do esperado). Mais uma vez, as dicas foram bem aceitas.

Minha mãe, ao ler estas dicas, acha interessante, mas sempre me diz: “eu nunca precisei de bebida para me divertir!”. E eu acredito. Acredito e acho ótimo. Mas o fato é que muitas pessoas têm na bebida um elemento de socialização importante. Muitas pessoas têm outras drogas também como dispositivos de prazer ou minimização de dores. E muitas pessoas também não estão dispostas a abandonar estes hábitos.

Falar em redução de danos nas brincadeiras de mesa de bar, nos nossos cotidianos, ao meu ver, é se dispor a instituir um canal de diálogo, que pode provocar reflexões importantes sobre os usos que cada um/a faz e as formas que cada um/a pode construir para minimizar riscos e danos, diante desses usos.

Saindo da esfera privada e adentrando nas políticas públicas, identificamos que a primeira vez que a redução de danos foi adotada como estratégia de saúde pública no Brasil foi em 1989, em Santos-SP. Naquela época, havia altos índices de transmissão de HIV, associados ao uso de drogas injetáveis. Começou a se falar em redução de danos, a partir do programa de troca de seringas – prevenção de HIV para usuários/as de drogas injetáveis. Ao invés de direcionar todos os esforços para convencer o/a usuário/a a deixar de consumir a droga injetável, passa-se a tenta oferecer informações e, portanto, condições para que, se ele/ela consumir, que seja de forma mais segura, com menos riscos e, consequentemente, menos danos.

Começa-se a se instituir, assim, uma estratégia de cuidado distinta da historicamente ofertada, que tinha como único horizonte a abstinência. Em 2003, a redução de danos deixa de ser apenas uma estratégia do Programa de DST e AIDS e se trona uma estratégia norteadora da Política do Ministério da Saúde apara Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas e da política de Saúde Mental também.

Se, por um lado, acredito que é importante marcar a redução de danos como uma alternativa de cuidado, diante de um contexto onde a abstinência era o único horizonte na oferta de tratamento ou na expectativa social diante para os/as usuários/as de drogas, por outro lado, penso que é importante destacar que a redução de danos não polariza com a abstinência. Isto é, não se tratam de coisas opostas, dicotomizadas.

Faço questão de destacar isso porque já tive que responder algumas vezes a pergunta: você trabalha com redução de danos ou com abstinência? Talvez, a resposta mais coerente com o que penso e que na afobação nem sempre consigo dar é: eu trabalho com pessoas! Mais do que isso! Eu acredito nas pessoas e procuro respeitar que as pessoas tanto tem vontades quanto tem autonomia sobre o seu corpo e sua vida. E é por isso que trabalho com a redução de danos. E é por isso também que, trabalhando com redução de danos, posso considerar o horizonte da abstinência, desde que esse seja o desejo da pessoa que busca tratamento e/ou cuidado.

Até então, estamos falando na redução de danos como estratégia, seja na esfera individual, seja na esfera das políticas públicas. Entretanto, penso que também é importante compreendê-la como “óculos”; isto é, como forma de olhar para a nossa sociedade e para os fenômenos que nela ocorrem. Neste sentido, convém destacar que a redução de danos toma como objeto de transformação não somente a dependência ou o hábito de consumir drogas de pessoas em particular, mas também a estrutura que envolve o complexo sistema de produção, comércio e consumo de substâncias psicoativas. Uma estrutura que, muitas vezes, só contribui para manutenção da exclusão e para o aumento da violência.

O que faz com que uma droga seja ilegal e outra não? Quem usufruiu da venda de drogas? Quais os efeitos para que usa? Sobre estes questionamentos, conversaremos nos próximos textos!

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Para ler mais sobre redução de danos recomendo o artigo Redução de Danos e Saúde Pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”, de Eduardo Henrique Passos e Tadeu Paula Souza. Disponível no link: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v23n1/a17v23n1.pdf

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imagem: zone41

1 COMENTÁRIO

  1. ADOREI SUA FALA, ME SINTO MUITO ORGULHOSA POR TER SIDO SUA ALUNA, MESMO QUE POR POUCO TEMPO, E QUERO LHE DIZER QUE ESTOU TRABALHANDO NO MEU ARTIGO SOBRE REDUÇÃO DE DANOS.
    TALVEZ VOCÊ NEM LEMBRE DE MIM.

    TE ADMIRO MUITO, SAUDADES: ANA LÚCIA (de saúde mental coletiva – unifavip)

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