Coreia do Sul convoca crianças na luta contra a demência

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Por Pam Belluck – New York Times

Eles estavam desorientados. Andavam curvados, mancavam e tateavam pela casa. Também ficaram confusos na banheira e tiveram problemas com a escada que parecia se mexer diante deles.

“Isso dói”, disse Noh Hyun-Ho, afundando no chão. “Pensei que iria morrer”, disse Yook Seo-hyun.

Por incrível que pareça, houve poucas risadas, considerando-se que Hyun-Ho, Seo-hyun e os outros eram na verdade crianças entre 11 e 13 anos, perfeitamente saudáveis.

Eles tiveram que andar com talas amarradas ao corpo e óculos embaçados, e receberam tarefas intituladas “Experiência com maçaneta” e “Experiência de banheiro”, para que entendessem como se sente uma pessoa idosa, fragilizada ou demente. Jeong Jae-hee, 12, diz que aprendeu que “mesmo que estejam sorrindo para nós 24 horas por dia, a situação é difícil para eles”.

Estas atividades fazem parte de uma notável campanha da Coreia do Sul para lidar com um problema crescente: o mal de Alzheimer e outras demências.

Sendo um dos países que envelhece mais rápido no mundo, onde quase 9% da população tem mais de 65 anos, a Coreia do Sul declarou uma “guerra contra a demência”, investindo dinheiro e atraindo os holofotes para uma doença que carrega as sombras da vergonha e do medo.

O governo sul-coreano está treinando milhares de pessoas, inclusive crianças, para se tornarem os “apoiadores da demência”. Eles aprendem a reconhecer os sintomas e cuidar dos doentes.

Simulação de envelhecimento
Essas crianças de 11 a 13 anos participam de um programa conhecido como “Experiência Completa de Amigos do Envelhecimento”, na região de Seul. Além do exercício de simulação de envelhecimento, elas assistem a uma apresentação de PowerPoint que explica a demência e aprendem a fazer massagens no Centro de Experiências de Demência, para depois praticarem em lares de idosos.

“O que fiz com meu telefone que ele foi parar dentro da geladeira?”, disse um instrutor, que tentava explicar às crianças a perda de memória. Então ele falou: “Vocês já viram alguém assim? Eles podem se perder por aí e acabar morrendo na rua”.

Em outra medida surpreendente, a Coreia do Sul também incentiva a população a obter diagnósticos precoces, apesar de o tratamento ser limitado.

“Antes, a doença ficava escondida, mas ainda hoje há estigma e preconceito”, afirma Kim Hye-jin, responsável pela política pública para idosos do ministério da Saúde. Queremos tirá-los de suas casas e diagnosticá-los, a fim de ajudar as famílias a se ajustarem e dar aos pacientes a oportunidade de serem atendidos em casa”, explica ele.

Foram criadas centenas de centros comunitários de diagnóstico de demência e os lares para idosos quase triplicaram desde 2008. Outros programas, como o hospital-diurno e o tratamento domiciliar, aumentaram cinco vezes e já chegam a 20 mil. Os tratamentos são subsidiados.

Um banco de dados do governo sobre a demência permite que as famílias registrem seus parentes e recebam números de identificação. Assim, quando forem encontradas pessoas vagando pelas ruas, é possível informar seus números às autoridades, que por sua vez entrarão em contato com as famílias.

Para financiar estes programas, a Coreia do Sul criou um sistema de seguridade social de longo prazo, pago com o aumento de 6,6% nos seguros nacionais de saúde.

Em 2009, o governo sul-coreano gastou cerca de US$1 bilhão no tratamento de pacientes com demências. Mesmo assim, a perspectiva de crescimento da população com mais de 65 anos, que passará dos 7% em 2000 para 14% em 2018 e 20% em 2026, assombra o país, econômica e socialmente.

“Pelo menos um membro da família precisa deixar de trabalhar para cuidar dos idosos”, afirma Kwak Young-soon, diretora de assistência social de Mapo, um dos 25 distritos de Seul. Como a Coreia do Sul incentiva as pessoas a trabalhar muito além de sua idade de aposentadoria, as famílias podem também perder os rendimentos dos idosos que sofrem de demência. A maioria das famílias já não tem gerações vivendo juntas para ajudar com os cuidados. Além disso, em algumas clínicas e lares, as listas de espera são grandes. “Não podemos ficar construindo lares de idosos; é como um fantasma que consome a casa inteira”, diz Kwak.

30 milhões de casos
A Coreia do Sul está no topo de uma explosão mundial da demência. Estima-se que em 2050 serão 100 milhões de casos; hoje são cerca de 30 milhões. Enquanto a abordagem sul-coreana é abrangente, nos Estados Unidos um projeto de lei nacional para o tratamento do Mal de Alzheimer foi apresentado este ano, com o objetivo montar um escritório especial para tratar dos assuntos da doença e criar um plano nacional integrado de tratamento. Entre os defensores do projeto, atualmente em comissão, está Sandra Day O’Connor, ex-juíza da Suprema Corte, cujo falecido marido teve Alzheimer.

Segundo Kwak, a Coreia do Sul também se preocupa que a demência, antes estigmatizada como “visão de fantasmas” ou “segunda infância” possa diminuir o respeito pelos mais velhos. “Há um ditado que diz que mesmo o filho mais cuidadoso não será tão carinhoso depois de cuidar de um pai por mais de três anos”, diz ela.

É por esta razão que as autoridades promovem a noção de que a piedade filial implica fazer tudo que for possível para ajudar os idosos com demência, uma condição chamada de “chimae”, uma doença do conhecimento e do cérebro que faz com que adultos voltem a ser bebês. Mas a baixa taxa de natalidade sul-coreana dificulta ainda mais os cuidados familiares.

“Sinto como se um tsunami estivesse se aproximando “, diz Lee Sung-hee, presidente da Associação Sul-Coreana de Alzheimer, que treina os funcionários de clínicas e lares e outras milhares de pessoas que interagem regularmente com os idosos: motoristas de ônibus, telefonistas, cabeleireiros e trabalhadores dos correios . “Às vezes sinto vontade de fugir”, conta ela. “Só a preocupação não move montanhas, mas se escolher uma área para começar a remover pedra por pedra, você pode abrir um caminho para mover toda a montanha.”

A Coreia do Sul também pretende transformar esta crise em uma oportunidade de negócios. O clube “Amigos do Envelhecimento”, financiado pelo ministério da Economia e do Conhecimento, incentiva as empresas a criarem “indústrias de prata”, as quais fabricam utilitários para os idosos, como talheres mais fáceis de usar e apoios automatizados que auxiliam na saída da cama, deslizam ao longo de uma faixa no teto e levam os pacientes para os banheiros ou sofás.
Estudantes universitários visitam o salão e usam óculos 3-D para assistir ao vídeo “Experiência da Demência” , em que seguem pessoas desorientadas nas ruas.

Em toda a Coreia do Sul, Lee dirige o treinamento dos “apoiadores da demência”, lutando contra a prática de castigar ou negligenciar os pacientes e defendendo a preservação das suas capacidades e autoestimas.

Aos interessados em trabalhar com os idosos como enfermeiros ou acompanhantes, Lee aconselha: “Ofereçam ao doente um balde e uma tábua de lavar e digam que a máquina de lavar está com problemas e que precisam da ajuda dele para lavar as roupas. Se o paciente disser que sabe fazer uma sopa de soja, mas esquecer os ingredientes, expliquem o passo a passo; caso contrário, ele poderá preparar uma sopa de sal e todo mundo vai dizer: “Ai, esta sopa está horrível, você não deve mais fazê-la.”

Até crianças pequenas são recrutadas para o programa. Kwak, a funcionária do governo local, organiza jogos para que os pacientes de casas de repouso brinquem com alunos do jardim de infância. Ela conta que isso ajuda a desestigmatizar a demência e que os pacientes que regridem aos seus primeiros anos de vida se relacionam melhor com crianças.

O Dr. Yang Dong-won, diretor de um centro estatal de diagnósticos em Seul, visitou jardins de infância e levou consigo um queijo tofu. “Ele é muito suave, como o cérebro”, e deixou o queijo cair e se desmanchar. “Agora, o cérebro está destruído”, disse ele às crianças.”A demência é muito ruim para vocês, então protejam seus cérebros. Não comam muito açúcar e peçam aos seus pais que não bebam álcool, pois ele não é bom para a cabeça”, acrescentou.

Em uma passeata pela demência, ao lado do estádio que abrigou a Copa do Mundo, as crianças carregaram cartazes promovendo o centro de Yang: “Façam o cérebro sorrir!”, “Como está sua memória? Há um centro de diagnóstico grátis em Mapo”.

O Centro de Demências de Mapo está localizado em uma rua movimentada próxima de uma universidade e de uma loja que vende essências naturais. Ele possui aparelhos para exercícios e uma van com fotos de idosos sorridentes.Yang conta que mesmo as pessoas sem sintomas frequentam o centro.

Massagens nos pés
As escolas oferecem créditos de serviços à comunidade, incentivando o trabalho com pacientes com demência, a quem os alunos chamam de vovós e vovôs. Em um programa, meninas adolescentes fazem massagens nos pés de idosas do lar Cheongam, que é dirigido por Lee, para as mulheres que não têm filhos homens para cuidar delas (na Coreia do Sul, as famílias dos filhos tradicionalmente assumem a responsabilidade de cuidar dos pais). Durante uma sessão de massagem, Oh Yu-mi, 16, esfrega os dedos de uma paciente e diz: “Estou trabalhando o coração; o calcanhar é o sistema reprodutivo; a massagem irá ajudá-la a evacuar mais facilmente”.

Park Min-jung, 17, que também faz massagens, percebeu que a demência poderia explicar por que seu avô recentemente pegou um táxi vestido com roupas de inverno em um calor sufocante e ficou circulando em seu antigo bairro, em busca da casa que não existe mais. “Ele me deixava com medo, mas o treinamento me ensinou que posso fazer as coisas para ele”, diz ela.

Uma paciente chorou assim que as meninas partiram, o que preocupou a líder do grupo Kim Min Joon, de 16 anos. Ela explica que os assistentes sociais sugerem que as meninas não entusiasmem demais as pacientes, para que as despedidas não se tornem traumáticas.Se existe 100 gramas de amor ou afeto, é preciso dividir em porções de 1 grama e distribuí-las ao longo de 100 visitas, não tudo de uma vez. “Mas eu não sou boa em controlar isso”, diz Kim. “Mesmo na escola, a sensação do toque permanece comigo”, explica ela.

Tradução: Claudia Lindenmeyer

Ana P.

Fonte: g1.globo.com

Foto: werls

2 COMENTÁRIOS

  1. Que projeto abrangente! Estou impressionada com a seriedade com que essa nação trata de seus velhos. Se conseguíssemos incluir de modo sistemático algum tema gerontológico nas escolas, mesmo que superficialmente, já seria um primeiro grande passo. Isso porque por aqui, os problemas materno-infantis coexistem com os do envelhecimento e a mentalidade vigente ainda é de país de jovens, país do futuro. Projetos intergeracionais por aqui ainda estão em fase embrionária…

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